Gutierres Fernandes Siqueira
3 min readDec 24, 2020

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A Mulher-Maravilha e os dois pregadores

O diabo ainda levou Jesus a um monte muito alto, mostrou-lhe todos os reinos do mundo e a glória deles e disse: — Tudo isso lhe darei se, prostrado, você me adorar. (Mateus 4. 8,9)

Cada um é tentado pela sua própria cobiça, quando esta o atrai e seduz. Então a cobiça, depois de haver concebido, dá à luz o pecado; e o pecado, uma vez consumado, gera a morte. (Tiago 1.14,15)

Quando assisti ontem ao filme “Mulher-Maravilha 1984” (EUA, 2020) imediatamente me lembrei dos dois versículos acima. Ah, antes de continuar, devo alertá-lo que este texto contém spoilers. O que mais me chamou a atenção na história é que nela aparece dois pregadores opostos: um tele-evangelista e um pregador de praça.

Você certamente conhece a história de Diana Prince, uma princesa amazona que é treinada desde criança como uma forte guerreira. Inclusive, quando criança ela tentou ganhar uma competição na trapaça, mas aprendeu desde cedo que esse caminho não é virtuoso — Diana não poderia ter algo pelo qual não lutou honestamente.

Na história, que se passa no ano de 1984, o seu principal inimigo é o empresário Maxwell Lord — um petroleiro carismático e adepto do show business. O Sr. Lord tem acesso a uma pedra mágica de origem romana que estava sob os cuidados da cientista Barbara Minerva. Essa é uma pedra do desejo, ou melhor, a pedra que concede todos os desejos. Ao tomá-la, o Sr. Lord pede à pedra mágica que ele se torne a própria pedra. O seu desejo era ser uma fonte de desejos. O falido empresário passa a encarnar a concessão de todos os desejos a quem o buscasse.

Claro que essa concessão não sai de graça — todos precisam pagar algum pedágio para conseguirem o desejo advindo da graça do Sr. Lord. O desejo concedido tem um preço, e um preço bastante alto, ainda que inconsciente.

Sr. Lord passa a receber em seu escritório várias pessoas que buscam saciar os seus desejos — que vão desde conquistas geopolíticas a automóveis de luxo. Entre os presentes, estava um tele-evangelista. O desejo desse pregador era que uma fita de sexo comprometedora fosse apagada. Em troca, o Sr. Lord pede que ao pregador que conduza a sua congregação a mudar o “eu oro” pelo “eu desejo” nos cultos. Nos EUA, a figura do tele-evangelista é praticamente um sinônimo de Teologia da Prosperidade. Assim como o pregador da prosperidade, o lema do Sr. Lord era “você pode ter tudo o que deseja”.

Todavia, com tantos desejos mesquinhos concedidos o mundo começa a desmoronar. O caos se instala nas cidades e o planeta fica à beira de uma guerra nuclear. O desejo sem limites rapidamente se converte em uma sociedade sem parâmetros. Essa é justamente a mensagem de um pregador maltrapilho que fala em voz alta no meio de uma rua cercada de pessoas correndo de um lado para o outro. Esse pregador, que aparece rapidamente no filme, expressa a mensagem central da história: a cobiça leva à ruína.

A história do filme mostra como o ressentimento alimenta a cobiça que, aos poucos, vai transformando pessoas em monstros. Esse é o caso tanto do empresário Maxwell Lord como da cientista Barbara Minerva, a Mulher-Leopardo. Todos os desejos concedidos passam a funcionar não como uma bênção, mas como uma verdadeira maldição. Essa maldição é expressa no corpo do Sr. Lord, que a cada desejo concedido a alguém, mas doente ele vai ficando.

O filme expressa uma verdade bíblica. A cobiça — que é o desejo desenfreado de bens, prazer e poder — nos suga até nos transformar em verdadeiros demônios. Além disso, caso todos os nossos desejos fossem concretizados, a nossa própria vida viraria um caos. A frustração é uma salvaguarda para as nossas almas. É lamentável como a Teologia da Prosperidade transforma a cobiça em virtude. É a esse tipo de ideia que o apóstolo Paulo chamava de “doutrinas de demônios” (1 Timóteo 4.1). A Mulher-Maravilha percebe o que muitos pregadores ainda não perceberam: a vitória passa pela renúncia de muitos desejos.

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