Minha homenagem ao teólogo Joseph Ratzinger

Gutierres Fernandes Siqueira
5 min readDec 31, 2022

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Joseph Ratzinger em foto de 1968.

Por Gutierres Fernandes Siqueira

Morreu hoje, aos 95 anos, o teólogo alemão Joseph Ratzinger, mais conhecido como o papa emérito Bento XVI. Sou evangélico e pentecostal, mas quem me conhece sabe que nutro um carinho pelo Ratzinger há anos. De longe, é o teólogo que mais admiro e que mais mergulhei em seus textos. Explico os motivos:

  1. Em primeiro lugar, além da fama de teólogo e erudito, a leitura que fiz de biografias e depoimentos daqueles que o conheceram, sempre ficou claro o caráter manso, cortês e gentil do “cão-de-guarda de Deus” — apelido que o seguia pela postura firme contra a Teologia da Libertação. Aquele sendo o prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, órgão do Vaticano responsável pela integridade doutrinária da Igreja, sempre tratou os “adversários” com muita generosidade.
  2. A teologia de Ratzinger é marcadamente cristocêntrica. Não só porque Ratzinger escreveu a maravilhosa trilogia Jesus de Nazaré — que une exegese e devoção — mas porque suas reflexões, homilias e construção teológica tinham a preocupação em resgatar a divindade de Cristo — perdida nas novas tendências teológicas que lembram apenas da natureza humana de Jesus de Nazaré. Mas, como diz o Credo da Calcedônia, Jesus é “verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem”. A cristologia que apenas enfatiza parcialmente sua natureza dupla tende a ser frágil. O próprio Credo observa que as duas naturezas de Cristo são inconfundíveis, imutáveis, indivisíveis e inseparáveis.
  3. Ratzinger foi o mais “luterano” dos papas. Quando ainda cardeal, Ratzinger teve papel central na construção da Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação — texto que faz o diálogo entre a teologia católica e o entendimento protestante clássico sobre a “justificação pela fé somente”. Embora não tenha “reabilitado” oficialmente Martinho Lutero — tirando os “anátemas” que condenam o reformador alemão até hoje como “herege” — Ratzinger foi quem mais chegou perto de reabilitá-lo. Em várias ocasiões, o teólogo alemão elogiou a personalidade e a teologia de Martinho Lutero. “Da minha parte, desde o início entendi que o diálogo com os protestantes fosse parte integrante da teologia. Por isso, já em Freising, fiz um seminário sobre a Confissão de Augsburgo [Confessio Augustana, os escritos confessionais fundadores da Igreja Luterana]”, declarou Ratzinger em entrevista (SEEWALD, 2017, p. 81).
  4. Ratzinger foi, também, o mais “barthiano” dos papas. O teólogo reformado suíço Karl Barth (1886–1968) estava “entre as referências em teologia com as quais cresci”, disse Ratzinger em entrevista (SEEWALD, 2017, p. 120). Barth foi o teólogo protestante mais importante do século XX.
  5. Ratzinger soube usar — e muito bem — a exegese crítica, mas também soube criticá-la. Por diversas vezes, Ratzinger alertou contra a tendência dos exegetas modernos de separar a Bíblia da fé. Outra preocupação de Ratzinger era de que a exegese se torne apenas “arqueologia”, a busca de vestígios mortos do passado, mas não o texto vivo soprado pelo Espírito. Em discurso no encontro com os bispos da Suíça, em 7 de novembro de 2006, Ratzinger declarou: “A nossa exegese fez grandes progressos; sabemos deveras muito sobre o desenvolvimento dos textos, sobre a subdivisão das fontes, etc., sabemos qual o significado que pode ter tido a palavra naquela época… Mas vemos também cada vez mais que a exegese histórico-crítica, se permanecer apenas histórico-crítica, remete a palavra para o passado, torna-a uma palavra daquele tempo, uma palavra que, no fundo, não nos diz nada; e vemos que a palavra se reduz a fragmentos porque, precisamente, se desfaz em tantas fontes diversas”.
  6. Diferente de tendências contemporâneas na teologia, Ratzinger protestou o tempo todo contra a separação da práxis e da verdade. Se, em simultâneo, “a ortodoxia (doutrina correta) sem ortopraxia (vida correta) não atinge o núcleo da realidade cristã”, o teólogo alemão lembra que “a práxis da fé depende da verdade da fé, na qual a verdade do homem é tornada visível e elevada a um novo nível pela verdade de Deus. Portanto, ela é fundamentalmente oposta a uma práxis que primeiro quer produzir fatos e assim estabelecer a verdade” (BALTHASAR, RATZINGER, SCHURMANN, 1986, p. 46; grifos meus).
  7. O apologista Joseph Ratzinger, apaixonado pela verdade e crítico dos relativismos diversos, ao mesmo tempo, sabia que não podia transformar Jesus em mera doutrina. Reproduzindo o pensamento de Romano Guardini (1885–1968), Ratzinger gostava de dizer que “a essência do cristianismo não é uma ideia, nem um sistema de pensamento, nem um plano de ação. A essência do cristianismo é uma Pessoa: o próprio Jesus Cristo. O essencial é Aquele que é essencial” (GUARDINI, 1982, p. XIV).
  8. Ratzinger era um cético para com a promessa de progresso apregoada pela modernidade. Não é à toa para quem cresceu na Alemanha nazista. O país progrediu cientificamente como nunca sob o regime totalitário nazifascista e tinha uma população que absorveu o mal de Hitler mesmo sendo uma das populações mais bem-educadas do mundo. Os crentes do progresso diziam que Ratzinger era apenas um reacionário com medo do novo, mas numa análise atenta vemos no papa emérito a lucidez diante de qualquer promessa utópica que, imbuída de esperanças, desbanca para tentações totalizantes. O conservadorismo de Ratzinger não é a defesa ingênua do status quo, mas a saudável desconfiança para soluções políticas mágicas e messiânicas. As perguntas de Ratzinger ressoam: “Hoje, vemos que o progresso pode ser também destrutivo. Por isso, devemos refletir sobre os critérios a serem adotados, a fim de que o progresso seja verdadeiramente progresso. […] É progresso quando posso destruir? É progresso quando posso criar, selecionar e eliminar seres humanos? Como é possível dominar o progresso do ponto de vista humano e ético?” (RATZINGER, 2011, p. 62–63).
  9. Ratzinger protestou bastante contra o relativismo ético, moral e epistemológico. Se não existe verdade, tudo é permitido. Os ventos da doutrina relativista levam a humanidade para o vazio de significado. “Cada dia surgem novas seitas e realiza-se quanto diz São Paulo acerca do engano dos homens, da astúcia que tende a levar ao erro (cf. Ef 4, 14). Ter uma fé clara, segundo o Credo da Igreja, muitas vezes é classificado como fundamentalismo. Enquanto o relativismo, isto é, deixar-se levar ‘aqui e além por qualquer vento de doutrina’, aparece como a única atitude à altura dos tempos hodiernos. Vai-se constituindo uma ditadura do relativismo que nada reconhece como definitivo e que deixa como última medida apenas o próprio eu e as suas vontades”, alertou em homilia apregoada em 18 de abril de 2005. Os críticos acusaram Ratzinger de caricaturar o relativismo em slogans que não representam a complexidade do tópico filosófico. É a acusação de quem apenas se impressiona com a retórica inflamada e apaixonada das homilias, mas a leitura do Ratzinger “filósofo” mostra o grau de complexidade de sua crítica, especialmente no livro Fé, verdade, tolerância.

Que Ratzinger descanse em paz no repouso do Senhor Jesus Cristo e na esperança da ressurreição.

Bibliografia:

BALTHASAR, Hans Urs von; RATZINGER, Joseph e SCHURMANN, Heinz. Principles of Christian Morality. 1 ed. San Francisco: Ignatius Press, 1986.

GUARDINI, Romano. The Lord. 2 ed. Washington: Regnery Publishing, 1982.

RATZINGER, Joseph. Fé, Verdade, Tolerância. 1 ed. São Paulo: Editora Raimundo Lulio, 2007.

RATZINGER, Joseph. Jesus de Nazaré. 1 ed. São Paulo: Editora Planeta, 2007.

RATZINGER, Joseph. Luz do Mundo. O Papa, a Igreja e os sinais dos tempos. Uma conversa com Peter Seewald. 1 ed. São Paulo: Edições Paulinas, 2011.

SEEWALD, Peter. Bento XVI — O Último Testamento. 1 ed. São Paulo: Editora Planeta, 2017.

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