Respondendo objeções à Hermenêutica Pentecostal

Gutierres Fernandes Siqueira
5 min readApr 14, 2020

Por Gutierres Fernandes Siqueira

Neste artigo apresento uma resposta às objeções mais comuns que os críticos da Hermenêutica Pentecostal apresentam. As minhas respostas se baseiam especialmente nos escritos de teólogos e biblistas mais relevantes do pentecostalismo contemporâneo. Entre os nomes que posso mencionar estão Stanley Horton (1916–2014), William Menzies (1931–2011), Anthony D. Palma, French Arrington, Robert P. Menzies, Craig Keener, James Shelton e Roger Stronstad. Todos eles possuem obras em português.

Vejamos as objeções e respostas:

1. Não existe Hermenêutica Pentecostal. Existe apenas hermenêutica.

A primeira vez que li essa objeção foi de um professor de hermenêutica. Eu fiquei espantado porque, como alguém que ensina a matéria, ele deveria saber que essa palavra é polissêmica. Não é uma questão de opinião, mas um fato que pode ser observado em qualquer livro de hermenêutica do mercado. Desde a primeira metade do século XX, a palavra “hermenêutica” ganhou novos significados nos estudos teológicos, bíblicos e filosóficos. Atualmente, esse termo não é apenas sinônimo de interpretação de textos, mas, também, significa “imaginário social” (segundo o conceito de Charles Taylor)1. Nesse sentido, todos nós podemos falar em uma hermenêutica católica, pentecostal, reformada, luterana, etc. Com isso, obviamente, não queremos dizer que a hermenêutica clássica tenha desaparecido. A hermenêutica enquanto imaginário social é apenas uma segunda fase complementar dessa matéria.

2. Os pentecostais querem “lucanizar” o Novo Testamento.

Essa talvez seja a acusação mais superficial dos críticos da Hermenêutica Pentecostal. É difícil imaginar que alguém que tenha lido o mínimo dos autores pentecostais faça uma alusão dessas. Em nenhum momento os teólogos pentecostais propuseram que fizéssemos uma leitura do Novo Testamento ou mesmo de toda a Escritura a partir dos escritos lucanos (Evangelho segundo Lucas e Atos dos Apóstolos). Na Hermenêutica Pentecostal não existe cânon dentro do cânon. Levamos muito a sério o princípio que “toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino” (2 Tm 3.16 NVI). Quando afirmarmos que Lucas era teólogo, queremos com isso dizer que a sua escrita narrativa tinha um propósito doutrinário e formativo.

3. A Hermenêutica Pentecostal contrapõe Lucas a Paulo.

Nada mais longe da verdade. Os pentecostais são crentes na unidade das Escrituras e, assim sendo, sabem que nenhum autor humano contradiz outro autor humano, ou seja, Lucas não contradiz Paulo e vice-versa. O autor das Escrituras é, acima de tudo, o próprio Espírito Santo e em Deus não há “sombra de variação” (Tg 1.17). O que os pentecostais dizem é que Lucas e Paulo possuem ênfases pneumatológicas diferentes, todavia, são visivelmente complementares. Enquanto o enchimento do Espírito nos escritos lucanos está ligado ao poder profético-testemunhal, nos escritos paulinos essa ênfase recai sobre a santidade. Essas duas ênfases já estavam presentes no Antigo Testamento, especialmente em Joel (foco carismático) e Ezequiel (foco ético).

4. O uso da Crítica da Redação é liberalismo teológico.

Ao afirmar que o evangelista Lucas era teólogo, os teólogos pentecostais costumam usar conclusões da Crítica da Redação, que é uma ferramenta do Método Histórico-Crítico. Embora seja verdade que essa ferramenta nasceu entre eruditos sem compromisso com a unidade, inspiração e autoridade das Escrituras, o seu uso não é necessariamente ruim. Vários exegetas conservadores usam conclusões da Crítica da Redação em seus comentários bíblicos, especialmente os mais técnicos. O teólogo conservador reformado D. A. Carson, por exemplo, faz uso com frequência da Crítica das Formas e da Crítica da Redação em seus livros O Comentário de Mateus e O Comentário de João lançados em português pela Shedd Publicações, uma editora conhecida pelo compromisso com a teologia evangélica clássica. O mesmo pode ser tido de outros exegetas conservadores como F. F. Bruce (1910–90), Craig L. Blomberg, Klyne Snodgrass, Douglas J. Moo, Darrell L. Bock, etc. A afirmação que o uso moderado de ferramentas do Método Histórico-Crítico faz do exegeta um “liberal” é ignorância pura e, normalmente, quem faz esse tipo de afirmação exaltada não está familiarizado com a própria erudição conservadora que diz defender.

5. A Análise Narrativa é um veneno do pós-modernismo relativista.

A Bíblia é a Palavra de Deus, mas também é um livro escrito na pena de diversos homens. Mesmo sendo autoritativa, inerrante e inspirada pelo Espírito Santo, a Bíblia é uma obra de arte literária dentro da linguagem e cultura dos hebreus, aliás, ela é a maior obra de arte da literatura mundial já escrita. Na crítica aos estudos de análise narrativa, alguns cristãos parecem que confundem a Bíblia com o Alcorão. O livro sagrado dos muçulmanos, segundo dizem, veio de uma revelação em que todas as palavras foram ditadas de Alá para o profeta Muḥammad. Na teologia islâmica, o Alcorão é uma produção completamente “divina”. Na teologia cristã, a Bíblia, por outro lado, é “livro divino-humano no qual cada palavra é, ao mesmo tempo, divina e humana”2. Os evangélicos creem que a Bíblia é inspirada até mesmo em suas palavras, mas não acreditam em um ditado divino.

A análise da Bíblia como literatura e narrativa sempre esteve presente nos estudos hermenêuticos, mas esse modo de análise ganhou um salto a partir da década de 1960 nos Estados Unidos, especialmente quando os departamentos de Letras das grandes universidades seculares passaram a inserir o estudo da Bíblia em seus programas acadêmicos. A maior parte das Escritura é narrativa e o estudo nessa perspectiva não deve ser desprezado. “Enquanto o estudo histórico estava interessado no mundo referido pelo texto, o estudo literário direcionava sua atenção para o mundo construído no texto”3. A abordagem narrativa certamente é um complemento à análise histórica, filológica e gramatical.

O reconhecimento da Bíblia como literatura não mina a sua autoridade, pelo contrário, reconhece a sua beleza e majestade como o livro mais importante já escrito. É estranho como alguém pode achar normal, por exemplo, o uso da filologia na exegese da Bíblia enquanto, na outra ponta, rejeita a análise literária. Não há lógica nenhuma em abraçar a cientificidade de um enquanto despreza o outro. Esse uso seletivo das ciências humanas e sociais torna apenas a leitura da Bíblia e o seu estudo mais pobre e tal seletividade é imperdoável para quem se diz teólogo. Os teólogos pentecostais fazem um grande favor ao cristianismo quando buscam teologia nas narrativas bíblicas.

Notas e Referências:

1 Charles Taylor define imaginário social como “as formas nas quais as pessoas imaginam a sua existência social, como elas se combinam com os outros, como as coisas acontecem entre elas e seus pares, as expectativas que são geralmente satisfeitas e as noções e as imagens normativas mais profundas que subjazem a essas expectativas”. TAYLOR, Charles. Modern Social Imaginaries.1 ed. Durham: Duke University Press, 2004. p 211.

2 HORTON, Stanley M. (ed.) Teologia Sistemática: Uma Perspectiva Pentecostal. 1 ed. Rio de Janeiro: CPAD, 1996. p 85.

3 COOGAN, Michael D. (ed.). The New Oxford Annotated Bible with Apocrypha. 1 ed. Oxford: Oxford University Press, 2010. p 2227.

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